Introdução
Inicialmente, vale contextualizar que vivemos em uma sociedade de consumo e que o consumismo é uma característica cultural imposta pelo mercado, conceituado também como um hábito mental forjado, uma ideologia. E, como características destacadas da sociedade de consumo, tem-se o número crescente de produtos e serviços, a velocidade das transações e o domínio do marketing e do crédito.
O fato é que o consumidor se encontra aprisionado, conforme leciona Fabiano de Masso[1], já que a felicidade falsamente imposta pelo ato de consumo faz com que o bem adquirido apenas momentaneamente o coloque no status almejado. Significa dizer que a realização do consumo o satisfaz somente provisoriamente, pois novas necessidades serão brevemente sugeridas.
Esse ciclo tem como consequências, dentre outras, a saturação de informações, diversões, produtos e serviços, a desigualdade social e a verdadeira relação de escravidão entre o “mercado” e os consumidores. Sem falar no meio ambiente, que a cada dia manda sinais de que não suporta mais ser agredido pelo homem.
O Superendividamento, outro fruto nocivo dessa engrenagem, surge ao passo que o consumidor – pessoa natural, mesmo querendo, não consegue pagar todas as suas contas mensais sem comprometer o seu mínimo existencial. A boa-fé desse consumidor é requisito essencial.
Contexto Social
De forma mais abrangente, Cláudia Lima Marques, jurista com destacada autoridade no assunto e colaboradora do Projeto de Lei que trataremos nesse artigo, enxerga o Superendividamento como um grande problema social, que condena um número de pessoas cada vez maior à exclusão e a uma existência indigna, além de ser também nocivo à economia, por retirar o consumidor do mercado, minimizando seu poder de compra.
Urgência
Como se vê, o tema, que sempre foi grave, torna-se mais alarmante a cada dia de isolamento social, já que mais e mais pessoas estão sendo condenadas à redução de renda, perda de empregos e de seus trabalhos e, consequentemente, a viver de forma indigna, saindo do mercado de consumo, tornando-se verdadeiros párias.
Nesse diapasão, as melhores lições de Direitos Humanos Fundamentais[2] ensinam que “A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência”.
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[1] DEL MASSO, Fabiano. Direito do Consumidor e Publicidade Clandestina: Uma análise jurídica da linguagem publicitária – Campus, 2008. P. 40.
[2] MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais – 3ª. ed. São Paulo: Atlas, 2000. P. 87.
Pesquisas apontam como causas de Superendividamento a perda de emprego, casos de doença e perdas na família e divórcio. É bem verdade que essas vicissitudes rompem quadros de regularidade econômica das famílias, no entanto, muitas vezes o Superinendividamento é resultado de um ciclo que há muito envolveu o indivíduo. Ocorre que, por se tratar de problema que afeta a honra da pessoa, é tendência natural buscar justificativas que não sejam a falta de instrução para o consumo, em especial o impulso na hora de comprar.
A teoria jurídica divide as causas do Superendividamento em três, sendo pré-contratuais – práticas abusivas na oferta de crédito, contratuais – cláusulas contratuais excessivamente onerosas e pós-contratuais – cobrança abusiva.
Ao tratar a origem do problema, vale rememorar que a função social do crédito, prevista na Constituição Federal, é “promover o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade” (art. 192, CF), tudo isso “como objetivo o bem-estar e a justiça sociais” (art. 193, CF). Em outras palavras, o intuito deve ser possibilitar o consumo, gerar mais empregos, aquecer a economia, de forma justa e equilibrada.
Porém, o que se vê hoje no país é alta concentração de lucro para poucos, com enorme destaque aos bancos, que faturam bilhões anualmente.
Causas Pré-Contratuais
Feito esse parêntese importante, a oferta de crédito é causa pré-contratual e a grande vilã, pois tem sido realizada de forma abusiva e contrária aos princípios da transparência e boa-fé, basilares das relações consumeristas. Não só os bancos, mas as financeiras, operadoras de cartão de crédito e inúmeros ramos do comércio perceberam que vale a pena vender crédito ao invés de tão somente o produto, já que nessa modalidade o lucro é muito maior, pois se paga pelo produto até mais do que o dobro quando se oferecem as famosas parcelas que “cabem no seu bolso”.
Em Rondônia, uma entidade civil de defesa do consumidor, há quase uma década passou a estudar essa problemática e a discutir judicialmente as publicidades de concessionárias de veículos e de grandes redes de lojas de móveis e eletrodomésticos que omitiam informações importantes como a taxa de juros, valor total do produto a prazo e até mesmo o número de parcelas. Todas as ações foram procedentes para obrigar as empresas a adequarem as publicidades, justamente para não induzir em erro o consumidor, levando-os ao endividamento.
Publicidade Infantil
Por outro lado, a velocidade e a eficiência do marketing tem mostrado que essa luta é desleal, mais ainda quando direcionada às crianças, que são hipervulneráveis. É grande o efeito maléfico do direcionamento de conteúdo mercadológico a elas, que influenciam sobremaneira a decisão de compra dos pais. As consequências vão muito além do endividamento, pois impactam diretamente na saúde de crianças e adolescentes, cada vez mais vulneráveis à obesidade e à incidência de doenças que antes eram comuns só nos adultos, a exemplo de diabetes e hipertensão.
Sendo esse um tema que merece aprofundamento em outra oportunidade, vale registrar as sequelas da publicidade infantil que têm ligação direta com o tema desse artigo – a adultização precoce, o excesso de consumismo e o estresse familiar. Isso porque os pais são forçados a conviver com a espinhosa missão de diariamente frear os desejos de consumo de seus filhos, movidos pelo apelo do marketing que ganha novos formatos a cada dia, como os youtubers, por exemplo.
Como luz no fim do túnel, a nível nacional, vê-se inúmeras práticas da sociedade civil organizada que buscam sensibilizar a coletividade sobre o impacto das publicidades às crianças, destacando-se o programa Criança e Consumo, do Instituto Alana[3]. De igual modo, a atuação da Rede Brasileira Infância e Consumo (Rebrinc)[4]. A Ordem dos Advogados do Brasil, em 2017, aprovou por unanimidade em seu Conselho Federal a Campanha Nacional “Por uma Infância Livre da Publicidade Comercial”, idealizada pelo subscritor desse artigo, em ato que reuniu diversos institutos de defesa da infância, do consumidor e autoridades como o então vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro Humberto Martins.
Causas Contratuais
Feito o destaque merecido às causas pré-contratuais, por representar o chamariz do Superendividamento, as causas contratuais se referem às condições dos negócios realizados entre consumidor e fornecedor. Altos juros, taxas diversas e imposição de seguros ou outros serviços, por meio de outra prática ilegal – venda casada, são exemplos de condições que agregam valor final ao financiamento e que passam a comprometer a renda do consumidor, que assina o negócio seduzido pela aleivosia oferecida pelo credor.
Causas Pós-Contratuais
Por fim e não menos importante, as causas pós contratuais são caracterizadas por métodos de cobrança abusiva e, em alguns casos, vexatória. Não raras vezes se observa instituições bancárias e financeiras sugerindo mais empréstimos àquele que já vivencia dificuldade para quitar os então existentes, fato que acaba por aniquilar a condição financeira do cidadão.
Resultados
Agora já superendividado, o problema inicialmente individual já atinge o seio da família, que se vê forçada a rescindir contratos importantes como a faculdade do filho, o plano de saúde, o financiamento do carro, dentre outros.
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[3] www.alana.org.br
[4] www.rebrinc.com.br
Nessa fase aumenta o estresse familiar e não raras vezes o quadro se agrava para depressão e, já em percentual muito menor, o suicídio. Situação extrema e que a cada dia acontece mais, porém com pouca atenção social, pois parece ser preferível pensar que o cidadão era frágil emocionalmente ou possuía outros problemas, do que acender sinal de atenção para essa ligação direta com o tema Superendividamento.
E não é só. Para muito além do núcleo familiar, a inadimplência extrema de dezenas de milhões de brasileiros acarreta a diminuição de consumo, a consequente baixa na geração de emprego e renda e a desestabilização da ordem econômica, política e social. Parece exagero, mas não é. Conforme resultados de 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstrou que as famílias são responsáveis por 65% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. E, pasme, cerca de 60% já se encontra endividada.
Se o problema é sério, por que não ganha destaque? Arrisco registrar, pela experiência de vinte anos na área consumerista, com foco em ações civis públicas e muitas delas relacionadas às publicidades, que a mídia geralmente não ousa explorar temas contrários aos interesses do marketing e, sobretudo, daqueles que faturam bilhões com essa problemática – os bancos.
Antes da pandemia, havia mais de 60 milhões de cidadãos envididados no país, sendo que metade já se encontrava Superendividado. A estimativa é de que em poucos meses, o número de superenvidados ultrapasse 40 milhões de brasileiros. É, portanto, preciso agir rápido para a garantia de um mercado saudável ou que tenha, ao menos, menor impacto diante de possível cenário bastante dificultoso no pós-pandemia.
A vacina: PL 3515/2015
Apelidado de vacina contra o Superenvidamento pelos consumeristas, o Projeto de Lei 3.515 de 2015 surgiu quando juristas estudavam o contexto dos 20 anos de Código de Defesa do Consumidor (CDC), diploma legal muito bem construído, que teve condições de levar o Brasil ao século XXI. Mas, faltava justamente um capítulo que positivasse a prevenção e tratamento do Superendividamento, como no Código do Consumo da França.
Assim, o Senado Federal criou comissão de juristas, que contou com autores do projeto original do CDC, foi presidida pelo Ministro do STJ, Herman Benjamin, e teve como relatora-geral a Professora Cláudia Lima Marques. Os trabalhos envolveram dezenas de reuniões técnicas, meses de debate com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e cerca de vinte audiências públicas.
O cerne dos trabalhos era encontrar uma solução, assim como existe o pedido de falência para as empresas, “dar uma chance para o homem comum”, por meio de prevenção e tratamento, garantindo sempre o mínimo existencial, conforme a Prof. Cláudia Marques explicou em Live Nacional realizada pelo nosso escritório.
Na ocasião, foi debatido o PL e anunciado o pedido de urgência apresentado ao presidente da Câmara Federal pelos Deputados Federais Franco Cartafina (MG) e Mariana Carvalho (RO), relator do projeto de lei e presidente da comissão do superenvidamento na Câmara, respectivamente. Ambos parlamentares também participaram da Live, além da consumerista Sophia Martini Vial, ex-presidente da Associação Procons Brasil.
Mobilização
De lá para cá, diversos outros Deputados apresentaram requerimentos de urgência e as entidades de defesa do consumidor iniciaram campanha maciça nas redes sociais e em outros meios – como outdoors em Brasília, visando a aprovação do PL, levantando dados que, como dito, não são levados ao conhecimento da sociedade. Destaque para o Instituto Brasileiro de Política e Direito o Consumidor (Brasilcon), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a entidade Procons Brasil.
Novidades
Importante para conhecimento e diferenciação do profissional do Direito e também para a sociedade em geral, o PL mais monitorado da Câmara Federal traz um capítulo específico sobre o Superendividamento, com medidas de prevenção (vacina) e repreensão / tratamento (cura).
Prevenção
A prevenção será realizada por meio do fomento de ações visando à educação financeira dos consumidores, a instituição de mecanismos de prevenção extrajudicial e judicial do superendividamento e regras bem mais eficientes relacionadas à oferta do crédito, principalmente ao consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade.
Dentre essas, vale enaltecer a obrigação de informar ao consumidor, de forma prévia, ou seja, no momento da oferta, sobre o custo total e a descrição dos elementos que o compõem, a taxa real mensal de juros, o número de prestações, bem como as consequências do inadimplemento. As famigeradas publicidades “Crédito para negativado”, “taxa zero” ou “sem juros” não serão mais permitidas.
O PL aponta ao fornecedor o dever de cuidado com o cidadão, de modo que esse (fornecedor) deverá avaliar a capacidade e as condições do consumidor de pagar a dívida contratada. Trata-se de dever anexo ao princípio da boa-fé, o dever de proteção e cuidado. É a evolução do Direito se materializando.
Repreensão
Com o fim de promover a repreensão, o PL aponta novas modalidades de práticas abusivas e de oferta e publicidade enganosa, prevendo sanções às condutas em desacordo com o crédito responsável.
Tratamento
Baseado em experiências exitosas, inclusive no Judiciário de alguns estados, o tratamento se dará mediante a negociação em bloco com todos os credores do consumidor, a seu requerimento.
Assim, os credores serão instados a comparecer para essa negociação única, que buscará tornar factível o adimplemento do devedor, impondo a todos um plano de pagamento que preservará o mínimo existencial ao consumidor. A recusa do credor à participação da avença para o plano de pagamento do consumidor sujeitará à suspensão da exigibilidade do débito e até interrupção dos encargos de mora.
O acordo terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada e o plano de pagamento deverá constar, dentre outros, as medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida, eventual referência à suspensão ou extinção das ações judiciais em curso e o termo “a quo” para a providência da exclusão do consumidor de bancos de dados e cadastros de inadimplentes.
Benefícios
O primeiro e mais importante benefício é devolver dignidade aos cidadãos, fator incomensurável e que se trata de fundamento da República Federativa do Brasil, assegurado no artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1.988 – a dignidade da pessoa humana.
Além disso, a Ordem dos Economistas do Brasil e o Instituto Capitalismo Humanista divulgou estudo que afirma ser possível, mediante a aprovação do PL e a recuperação dos créditos perdidos para as empresas e o mínimo existencial para os consumidores, que as famílias voltem a movimentar a economia com previsão de injeção de R$ 555 bilhões em até um ano.
Assim, com o resgate dos devedores de suas “superdívidas”, a economia tende a girar melhor, já que o pagamento do crédito também é essencial para a sua estabilidade e a solidez. E, nesse momento, bom rememorar que o IBGE aponta que 65% do PIB é integrado com recursos provenientes das famílias.
Por fim, como o projeto aborda a educação e técnicas de proteção ao consumidor, tornará o mercado de crédito brasileiro mais saudável, ajudando a superar a “cultura da dívida” e consolidar a “cultura do pagamento”.
Conclusão
O Superendividamento do Consumidor constitui grave problema à sociedade, atinge os seios das famílias e, diretamente, influencia na economia. Prevenir e tratar constituem o melhor caminho, sendo o PL 3515/2015 o meio mais adequado para tanto.
Independentemente das alterações esperadas pelo PL, diversos dispositivos legais vigentes possibilitam a elaboração de tese suficiente para buscar o tratamento ao consumidor superendividado, quais sejam, o princípio da dignidade da pessoa humana, a distorção realizada na função social do crédito pelo mercado, o forte apelo das ofertas de crédito e os princípios basilares do CDC, a boa-fé, equilíbrio, harmonia, transparência, somados ao princípio da cooperação e o grande estímulo ao acordo sacramentado no Código de Processo Civil.
Os advogados são protagonistas de mudanças sociais e devem sair a frente, sobretudo no pós-pandemia, período que o Direito até então posto não será o mesmo. De igual forma, urge também o fortalecimento da sociedade civil organizada, visando contribuir com as instituições para a educação financeira do cidadão e coibindo práticas desleais do mercado, quando necessário e de forma coletiva.
A sociedade organizada, os Ministérios Públicos, Defensorias, Judiciário e órgãos de Proteção ao Consumidor (Procon) precisam dialogar mais, para que os graves problemas da coletividade saiam da retórica para o enfrentamento, por meio de aprendizado conjunto, união e, sobretudo, a busca pela efetividade das normas.
A harmonia e o equilíbrio tanto almejado pelo CDC só serão alcançados com o diálogo franco entre o fornecedor e o consumidor, com apoio dos atores responsáveis pelo sistema. Nessa linha, os precursores dessa nova realidade que se avizinha certamente serão os primeiros vitoriosos com a positivação da razoabilidade e solidariedade, vetores das relações de boa-fé, por tornar eficiente a engrenagem da economia, nutrida por um consumo consciente e sem gangorras de dívidas exasperadas.
Gabriel Tomasete
Advogado Consumerista, Sócio do Oliveira & Tomasete Advocacia.
Atua para entidade de defesa de consumidores desde 2005, com foco em ações civis públicas.
Membro fundador da Rede Brasileira Infância e Consumo.
Ex-presidente do Conselho Estadual de Defesa do Consumidor (RO) e da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/RO por duas gestões.